ÉTICA EM MEDICINA VETERINÁRIA

RESOLUÇÃO 39/2018 do CONCEA: analisando o que traz e o que implica no comportamento ético de médicos veterinários.

 

Ismar Araujo de Moraes*

Em 23/08/2018.

       Recentemente a classe de médicos veterinários foi surpreendida com a publicação da Resolução Normativa nº 39, de 20 de junho de 2018 do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA  e que “dispõe sobre restrições ao uso de animais em procedimentos classificados com grau de invasividade 3 e 4, em complemento à Diretriz Brasileira para o Cuidado e a Utilização de Animais em Atividades de Ensino ou de Pesquisa Científica (DBCA). O regulamento é especialmente voltado para as Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs) a quem cabe analisar os procedimentos a serem utilizados nas atividades didático-científicas, inclusive no que se refere à capacitação dos pesquisadores envolvidos, e onde a presença do Médico Veterinário é técnica e legalmente indispensável.

 

       Lendo a normativa, é possível concluir que o CONCEA malversa o que deve ser entendido como “capacitação legal”. De modo aparentemente inequívoco o termo “Capacitação legal” só poderia ser entendido como aquela capacitação que conta com previsão em lei. No caso de que trata a resolução, procedimentos com animais que causam estresse, desconforto ou dor de intensidade intermediária ou alta, existe previsão clara em lei.  No nosso entendimento, basta a leitura da letra “a” do Artigo 5º da LEI nº 5.517, de 23 de outubro de 1968 que diz “É da competência privativa do médico veterinário o exercício das seguintes atividades e funções a cargo da União, dos Estados, dos Municípios, dos Territórios Federais, entidades autárquicas, paraestatais e de economia mista e particulares: a) a prática da clínica em todas as suas modalidades”.

 

       Ao definir no artigo 2º que “capacitação legal e ética” é uma condição de quem simplesmente tem o “conhecimento dos princípios éticos aplicáveis à experimentação animal”, o  CONCEA desconsiderou a Lei Federal 5.517 de 23 de outubro de 1968  que “Dispõe sobre o exercício da profissão de médico-veterinário”.

 

Res. CONCEA 39/2018 – Art. 2º   Todas as pessoas envolvidas na execução de protocolo de pesquisa ou ensino com grau de invasividade nível 3 ou 4 devem possuir:
 I -capacitação legal e ética: conhecimento dos princípios éticos aplicáveis à experimentação animal; e
II -capacitação técnica: aptidão de executar o experimento com boa qualidade técnica, a fim de assegurar a confiabilidade dos dados. Parágrafo único. Ambas as capacitações serão avaliadas e reconhecidas pela CEUA.

 

       Novamente, o CONCEA pareceu desconsiderar a lei 5.517/1968 na redação do artigo 4º da normativa publicada ao deixar claro a previsão de permissão para realização de procedimento cirúrgico  por pessoa leiga, ainda que treinada, e não somente por um médico veterinário (MV) legalmente competente.

 

Res. CONCEA 39/2018 –  Art. 4º A capacitação para procedimentos cirúrgicos em projetos de pesquisa que envolvam animais deve ser comprovada por meio de uma das seguintes formas:
I – Graduação completa em medicina veterinária; ou
II – Treinamento do procedimento cirúrgico supervisionado pelo médico veterinário responsável técnico do setor onde será realizada a atividade, quando os procedimentos se aplicarem a peixes, répteis, anfíbios, aves, mamíferos murídeos, marsupiais de pequeno porte e quirópteros.

 

       Um questionamento que se apresenta é: como deve proceder um Médico Veterinário envolvido em atividades didático-científicas frente ao regulamento publicado pelo CONCEA? Nosso entendimento é que a Lei maior deve prevalecer sobre as demais instruções normativas publicadas na forma de portarias,  resoluções, ou infralegais.

 

       Do ponto de vista ético, e conforme prevê o seu código de ética (Resolução 1.138 de 16 de dezembro de 2016) cabe ao médico veterinário cumprir os regulamentos relacionados com suas atividades e principalmente aqueles emanados dos órgãos de fiscalização do seu exercício profissional, ou seja do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), e complementarmente do Conselho Regional de Medicina Veterinária em que tiver sua inscrição. Assim sendo, nenhum MV poderá ensinar para leigos o que é de sua competência privativa, assim sendo, não existe a possibilidade de supervisionar o treinamento conforme a previsão, sem concorrer para a abertura de processo ético profissional contra si, ainda que a Resolução 39/2018 do CONCEA preveja tal possibilidade. Da mesma forma omitir-se e não denunciar ao CRMV desvios das regras da Medicina Veterinária, da mesma forma configura infrações éticas que concorrem para penalidades que podem variar entre advertência confidencial, censura confidencial, censura pública ou mesmo suspensão do exercício profissional por até 90 dias.

 

        Não podemos deixar de considerar que,  se o procedimento cirúrgico vier a ser praticado por outro profissional ou pessoa leiga, configurará a contravenção penal com previsão de pena no Código Penal Brasileiro, por tácito exercício ilegal da profissão. Conclui-se, por conseguinte, que não há como um Médico Veterinário praticar, ou deixar que pratiquem, em locais de seu exercício profissional ou de responsabilidade técnica, treinamentos conforme previstos no artigo 4º da Resolução 39/2018 do CONCEA.

 

       Espera-se do órgão máximo da Medicina Veterinária, o CFMV, que ele atue no sentido de que sejam revogadas as disposições contrárias à Lei federal 5.517/1968, para o restabelecimento da ordem e em defesa da qualidade dos procedimentos e do bem-estar dos animais utilizados nas situações de imperativa necessidade de ensino e/ou pesquisa.

 

       O regulamento do CONCEA traz no inciso I do parágrafo 1º (sic) do artigo 4º o reconhecimento de que todo procedimento cirúrgico deve ser “executado com boa qualidade, incluindo assepsia, anestesia, diérese, hemostasia, manejo correto dos tecidos e síntese, e controle de dor pós-cirúrgico, quando aplicável. Faltou apenas reconhecer que por força de lei, tudo isso que deve ser assegurado ao animal num ato cirúrgico, compete aos Médicos Veterinários, devidamente registrados nos CRMVs das áreas de jurisdição em que se localizam as instituições que se propõem às práticas didático-científicas.

 

Res. CONCEA 39/2018 –  Art. 4 § 1º Ao treinamento a que se refere o inciso II, aplicam-se as seguintes regras:
I – deverá assegurar que o ato cirúrgico seja executado com boa qualidade, incluindo assepsia, anestesia, diérese, hemostasia, manejo correto dos tecidos e síntese, e controle de dor pós-cirúrgico, quando aplicável;

 

      A resolução 39/2018 do CONCEA traz ainda no artigo 5º textualmente que “para cirurgias envolvendo mamíferos não enquadrados no art. 4º, o médico veterinário responsável técnico do biotério do setor deverá estar sempre presente”.  O referido artigo 4º informa sobre a possibilidade de cirurgias por pessoas treinadas, quando tal  procedimento vier a ocorrer em peixes, répteis, anfíbios, aves, mamíferos murídeos, marsupiais de pequeno porte e quirópteros. O que deve ser questionado é sobre o porquê desse grupo de animais não ter o direito de sofrer cirurgias sempre realizadas por profissionais legalmente competentes e habilitados para o reconhecimento da anatomia e da fisiologia geral e da dor, já assegurado em Lei.

 

Res. CONCEA 39/2018 – Art. 5º Para cirurgias envolvendo mamíferos não enquadrados no art. 4º, o médico veterinário responsável técnico do biotério do setor deverá estar sempre presente.

 

       Por finalmente, cabe ressaltar e discutir a forma como os papéis do responsável técnico e do Médico Veterinário, são aparentemente confundidos na Resolução 39/2018 do CONCEA. O Responsável Técnico (RT) é a figura que tem relação direta com o órgão de fiscalização do exercício da Medicina Veterinária (CFMV/CRMVs) e na resolução pareceu que o CONCEA  espera dele um papel que não lhe compete. Sob o ponto de vista da regulamentação do CFMV, lhe cabe essencialmente a orientação, e não necessariamente a execução das práticas médico-veterinárias, dentro do estabelecimento ou instituição onde tem sua contratação obrigatória. Do RT espera-se o  olhar superior de um profissional legalmente habilitado para intervir nos processos que vão de encontro aos regulamentos. Não ser parte do quadro da instituição ou estabelecimento contratante é inclusive desejável para que seu papel seja conduzido de modo sempre isento e consequentemente ético.  A função  de execução, em essência, é para o médico veterinário pesquisador contratado pela instituição, ou seja, um  funcionário.  O RT, como dito, tem a responsabilidade com a orientação para que haja respeito às regras gerais, inclusive da Medicina Veterinária, pois é para tal que se exige em lei a sua contratação e presença em caráter não permanente.

 

Bibliografia Consultada:

 

BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia. RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 39, DE 20 DE JUNHO DE 2018.   Dispõe sobre restrições ao uso de animais em procedimentos classificados com grau de invasividade 3 e 4, em complemento à Diretriz Brasileira para o Cuidado e a Utilização de Animais em Atividades de Ensino ou de Pesquisa Científica (DBCA). Publicado no DOU de 25 de junho de 2018.

 

BRASIL. Presidência da República – Casa Civil.  Lei no5.517, de 23 de outubro de 1968. Dispõe sobre o exercício da profissão de Médico Veterinário e cria os Conselhos Federal e Regionais de Medicina Veterinária.

 

CFMV. Conselho Federal de Medicina Veterinária. Resolução nº 1.138, de 16 de dezembro de 2016. Aprova o Código de Ética do Médico Veterinário no âmbito do Sistema CFMV/CRMVs. Publicada no D.O.U. de 25/01/2017.

 

 

*Médico Veterinário (CRMV-RJ nº 2753), Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

 

 

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